PRISCILLA
BUHR
Ausländer, o livro
Quando sabemos que um trabalho chegou na reta final de sua trajetória? Como sabemos em que lugar aquelas imagens ganham sentido e materializam os sentidos de uma história? Em 2013, após dois anos trabalhando na edição do ensaio "Ausländer" e da premiação no Prêmio Brasil de Fotografia a única certeza que tinha era que eu precisava trilhar um longo caminho para me encontrar naquele trabalho. "Ausländer" ainda tinha muito o que me revelar e mas vi tomada pela ansiedade de publicar, de tornar aquele emaranhado de sentimentos em algo tátil. Resolvi me aventurar em editais, contatos com editoras, realizadores e quanto mais justificava aquela história tão frágil em textos para formulários mais me afastava do real sentido de "Ausländer". O entendimento dessa capacidade narrativa da fotografia se pôs além das formalidades, das normas, dos contratos. O alargamento de suas fronteiras, suas tradições, pedia a escuta do tempo, a necessidade do respiro, do olhar para o individual de cada sujeito envolvido nas tensões daquela história.
Desde que o ensaio começou a tomar forma sentia que aquelas imagens não pertenciam à paredes. Não me parecia verdadeiro pensar aquela obra em um projeto expográfico, em uma ocupação de espaços expositivos. "Ausländer" desde o início me dizia que seu espaço era um território íntimo a ser apreciado individualmente. Sempre o vi como livro. Sempre desejei folheá-lo. Mas não o encontrava, em meu imaginário, ocupando uma prateleira. Eu via "Ausländer" guardado no fundo de uma gaveta, quase escondido, ou até mesmo esquecido. Era isso que aquelas fotografias me pediam.
Foi aí que a palavra publicar passou a não fazer tanto sentido quanto a palavra realizar. Sentia que a potência de "Ausländer" estava em um lugar de encontro íntimo, raro, pontual, que de certa forma poderia perder sentido, ou adquirir outros, em reproduções, tiragens, edições. "Ausländer" me pedia a privacidade de um artefato pessoal, a intimidade de uma caixa de memórias. Um risco assumido. Risco da perda, risco do dano, risco do esquecimento. "Ausländer" se tornou um artefato tão frágil quanto uma memória e assim como uma, ganhará marcas, fissuras, perderá forma com o tempo.
A partir daí, foram mais dois anos de reencontro com os sentidos do trabalho para tentar encontrar as respostas daquela história. Precisava acreditar que "Ausländer" não se encerrava no conceito de fotografia de família mesmo sendo um trabalho sobre família. Também precisava ressignificar o conceito, compreende-lô e assumi-lo.
Entendia que o projeto "Ausländer" precisaria unir a publicidade da força de um livro, com o cuidado de uma concepção de um projeto gráfico e conceitual, como uma experiência pertencente e essencial ao processo de criação do livro como arte. Ter a obra nas mãos, folheá-la, senti-la, experimentá-la e torná-la relíquia, no sentido literal da palavra, como algo de alguém que se respeitou e se admirou. Mas que caminho para uma publicação viável esse projeto precisava percorrer?
"Ausländer" pedia folhas em branco, vazios, escritos a mão, cheiros, texturas e cores diferentes. "Ausländer" pedia para ser um objeto suscetível às marcas do tempo e que envelhecesse junto com as memórias ali contidas. Pensar processos de concepção, edição, diagramação e escolha de materiais passou a ser uma busca de referências no acervo da própria família. Iniciei uma pesquisa nos cadernos, agendas e cartas dos meus avós. Observando o papel, o desenho dos escritos, texturas, dobras, costuras. Nas fotografias do arquivo familiar busquei referências nas paletas de cores, no gestual, no vestuário, nos tecidos. De alguma forma entendi que "Ausländer" pedia um resgate da forma como guardávamos nossas memórias, teria que ser confeccionado e não produzido.
O processo de confecção do "Ausländer" se deu de forma bastante intuitiva. O tempo, ou melhor, a falta de tempo para produção acabou sendo uma grande aliada pois me apresentou a simplicidade como solução. Poderia ter optado por um suporte mais sofisticado, como os antigos álbuns e relicários de família, mas preferi trabalhar a obra como uma espécie de caixa de memórias, onde vamos acumulando objetos de grande valor sentimental, mas que muitas vezes só fazem sentido em uma determinada linha de tempo das nossas vidas. Diversas vezes me peguei imaginando como seria folhar aquele objeto/livro 30 anos depois. O que faria sentido? Que novas histórias aquelas imagens poderiam me contar? E essa incerteza tão presente no conceito afetivo de memória me acompanhou no desenvolvimento dessa ideia.
"Ausländer" precisava ser, de alguma forma, um objeto preparado para receber tanto no sentido subjetivo, como no literal, sentia que em algum momento, em algum lugar, alguém poderia deixar alí, junto ao meu "relicário" alguma coisa que pudesse levar a minha história para outros caminhos. Daí desenvolvi uma espécie de embalagem de tecido, como os antigos diários, com bolsos e pequenos compartimentos. Costurei a mão em um retalho de tecido de algodão cru que minha avó usava para fazer almofadas e minha mãe bordou a palavra "Ausländer" com linha preta na frente. Começar o processo de confecção do livro pela embalagem, de certa forma, me remeteu à uma história contada de trás para frente. Onde o "fim" se tornava o suporte de toda a história que seria contada alí. E que rumos elas tomariam eu já não alcançava mais e não fazia tanta questão de delimitar esse futuro.
Em uma das pesquisas nas caixas de cartas do meu avô encontrei um pequeno caderno em branco, com folhas pautadas já bastante amareladas e com marcas de ferrugem dos grampos. No mesmo instante tive certeza que ali eu escreveria a história de "Ausländer" e aquelas palavras não poderiam ocupar o mesmo espaço das fotografias, sentia que faria mais sentido se viesse em folhas soltas, colocadas em algum dos bolsos da embalagem, como se fossem cartas escondidas a espera da descoberta, no desejo de revelar segredos, sentimentos. Além do meu texto, convidei minha irmã, Karina Buhr, para escrever sobre aquela história que também era dela. Não faria muito sentido colocar alí, ao lado de objetos tão pessoais, palavras de alguém que não tivesse visto o meu avô sentado na varanda de casa, conversando em alemão com seu melhor amigo, que viera junto com ele de navio, fugindo da guerra já anunciada. Aquela cena deles lá, conversando por horas, precisava fazer sentido para alguém que fosse escrever sobre "Ausländer". Por mais que eu tivesse certeza que eu teria belos textos escritos por críticos, professores ou curadores de fotografia, as palavras informais da minha irmã desenhadas a mão naqueles papéis amarelados bastavam.
O livro em si, deixou de ser um objeto singular e se tornou dois pequenos livretos encadernados e costurados a mão, caminho que encontrei junto com os designers d'A Firma, que me ajudaram nas soluções gráficas do projeto. Não queria, de forma alguma, que o livro se tornasse algo formal, com diagramação clássica, cortes perfeitos, algo claramente e perfeitamente diagramado com aspecto de um livro padrão. Eu precisava contar aquela história de uma forma mais solta, simples e nos encontramos muito bem na construção desses caminhos.
Livro de artista "Ausländer", edição única, agosto de 2015.
Fotografia e edição:
Priscilla Buhr
Tratamento de imagem e impressão:
Cecília Maria Impressões especiais
Projeto gráfico:
A Firma